AONDE O SAL É DOCE
Atualizado: 8 de fev. de 2021

Eu devia ter uns 6 anos de idade. Foi ali a primeira memória ao sentir meu corpo flutuante, como se fosse uma astronauta no espaço. Esse momento aconteceu na praia do Arpoador, Rio de Janeiro, quando aprendi a boiar nas águas salgadas do Atlântico.
Havia uma mistura de medo com excitação do novo, imagine só poder flutuar! Aquele momento ficou marcado, porque logo em seguida uma grande onda me engoliu, e sem perceber fui lançada, com toda força, embaralhada até onde a areia termina.
Fiquei apavorada, sem conseguir respirar direito, e principalmente, sem entender de onde veio o caos dentro daquela calmaria, que poucos segundos antes eu me encontrava. Aquele momento foi decisivo. Choque e percepção. Tive que escolher. Eu poderia amar ou me afastar para sempre do oceano. Respeito.
Com o trauma digerido, o tempo me levou para outras formas de me relacionar com essa imensa massa líquida azul. Ou verde. Senti que ali era minha fuga, meu lugar espiritual, minha paz. O cheiro da maresia me trazia para o lugar mais secreto, mais íntimo. Ali eu poderia chorar sem medo ou vergonha. Poderia caminhar por horas, sem ter que dizer nada ou dar satisfação a alguém. Porto seguro.
É como se pudesse chegar mais perto da liberdade, me entregar inteira para tudo que o tange às sensações. Daquelas mais reservadas. Aquelas que nem eu mesma consegui acessar. Mas a natureza é sábia, e como um bom velejador, é preciso se antecipar um pouquinho no instinto dos ventos que vem, para que as velas estejam no lugar certo, e me levem até o impossível. Deixar levar.
São faróis que guiam para dentro da alma, e permitem trazer o foco de luz no entendimento de que tudo é perene. Até mesmo o amor. Pudera vencer todos os medos, as dores, assoprar as cicatrizes para bem longe.
Mesmo assim, me envolvo, me enrosco, me entrelaço, me perco, mergulho e logo volto para a superfície. Aos poucos, fica notório que pode ser bom se perder na imensidão. Antes de se encontrar na saída de um labirinto. Se achar é satisfatório para a matéria, mas a melhor parte do aprendizado é o processo que está na vivência, no espírito.
O mar habita no lugar mais profundo do meu ser. Ainda não entendo a complexidade total e minuciosa da sua importância e magnitude, mas eu sei que essa força me faz acreditar que é bom estar viva. Que vale a pena lutar por toda forma de vida. Porque nessas águas eu não só estou, eu sou.
Dentro de um espiral de certezas líquidas que vão e vem, percebo às vezes é só preciso sentir. Muitas vezes as palavras não conseguem alcançar alguns dos meus caminhos. Então eu vou pra dança para achar as respostas. Ou nas demais artes que me acompanham nessa travessia.
O mar me ensina que é no caos que vem a calmaria, então não importa quantas ondas vierem na minha direção. Quero imergir em cada uma delas. Seja morna, seja fria. Seja violenta, seja serena. A única verdade é que não se pode fugir dos medos. Uma hora eles voltam. Escolhi olhar para eles, bem dentro dos olhos. Abraçada na oportunidade de eternizar uma cura, virar o ciclo e a jornada no tempo.
Não foram sete dias ou noites. Foram sete anos em sete mares. Me deixei e resgatei centenas de vezes. Contudo os sinais estavam sempre à beira do horizonte num entardecer, onde vogava sentindo cada ondulação que trazia meus cabelos e meu corpo num vai e vem sem fim. Como se estivesse sendo ninada. Acolhida. Libertada da ferida. Na doçura e no encantamento medido pelo breve trânsito de uma menina que escolheu o seu percurso. Aonde o sal também é doce.
- Barbara Veiga

Fotografando no Salar do Uyuni, Bolivia.